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  • Foto do escritorBe YourTrip

Caminho da Fé: Duas Amigas atravessando a Serra da Mantiqueira



Já tinha escutado muitas coisas a respeito do Caminho da Fé. Sabia que era um caminho de peregrinação que chegava à basílica de Nossa Senhora Aparecida em Aparecida do Norte, SP, e que foi inspirado no milenar Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Só por isto já me parecia especial, mas conversar com peregrinos e ler os relatos de quem já fez o Caminho de bike e a pé transformou o desejo em planejamento mais rápido. As histórias narram que esse caminho é uma experiência única de fé, de superação, de imersão na natureza, de desafio emocional e físico, de generosidade, de autoconhecimento e de contemplação de lindas paisagens entre tantos outros adjetivos que o definem. Inspiradas por estas partilhas, lá fomos a Cris e eu fazer mais uma cicloviagem.


Como toda viagem, a nossa também começou no dia em que decidimos ir. E assim foram alguns meses de treinos e planejamento. Uma ansiedade imensa. Já havíamos feito uma viagem de bike e achamos incrível. Desvendar cada etapa do caminho com esforço, sofrimento e toda aquela natureza maravilhosa acompanhando, nos lembrava o tempo todo o quanto somos pequenas e o quanto as coisas mais simples da vida são importantes. E essa expectativa nos acompanhou até o dia escolhido para a partida.

A quilometragem total a ser percorrida depende da escolha do ponto de partida. O Caminho da Fé possui saída de várias cidades. Nós optamos pelo caminho tradicional que sai de Águas da Prata, SP.


Percorremos ao todo 316 km de bicicleta, boa parte deles atravessando a Serra da Mantiqueira. O percurso que escolhemos tem início no estado de São Paulo, passa por Minas Gerais e volta para o estado de São Paulo onde é concluído. Ele é quase em sua totalidade percorrido em estradas de terra que cortam a área rural dos municípios que compõem o trajeto. A altimetria é respeitada e temida até pelos mais preparados e experientes esportistas. Nossa previsão era concluir o caminho em cinco dias, mas contratempos que contarei a seguir prolongaram a viagem. E chegou o grande dia. Adrenalina de véspera, jantar, deixar o alforje pré-arrumado (malinha que vai na parte de trás da bicicleta), colocar garrafinha de água no congelador, rezar para agradecer a oportunidade, pedir proteção divina para a aventura e cama.

Começa a viagem.


Dia 1: Águas da Prata a Barra

Café da manhã na padaria próxima à Pousada Refúgio do Peregrino, foto na estação de trem e estrada! Ou melhor, chão de terra com uma subida logo de cara pra aquecer. Algumas horinhas de pedal e o suporte de alforje de uma das bikes simplesmente se dividiu em duas partes. Era a estreia dele, estava novinho. Simulando a posição de uma mochila, fixamos o alforje nas minhas costas com sticks (elásticos fortes) e seguimos viagem. Aqui a primeira prova de que o caminho é feito de generosidade. Encontramos um grupo de amigos fazendo o treino de um trecho do caminho, pois estavam se preparando para fazê-lo por inteiro no mês seguinte. Detalhe: um deles estava treinando com um alforje (bagageiro) vazio para testá-lo. Adivinha? Nunca havia me visto na vida e me emprestou sem titubear. Vencido o contratempo, seguimos viagem pensando sobre o quanto peregrino é um ser diferente. O rapaz que me emprestou o bagageiro disse uma coisa que me acompanhou durante toda a viagem. Meu terço estava pendurado na bike. Ao olhar para ele, me disse: “Nos momentos de maior dificuldade olhe para este terço e suas forças se renovarão”. E assim foi. Mal sabia ele o que vinha pela frente e o quanto isso me ajudou. Paramos em um restaurante para almoçar. Erramos na escolha do local, pois nossos pratos demoraram para ficarem prontos e isso atrasou consideravelmente a viagem. Decisão para os próximos dias: comer pão com ovo no almoço. Rápido, prático e nutritivo. Fomos até Barra e dormimos na Pousada do Tio João e da Joelma. Banho quentinho para espantar o frio da noite, uma sopa gostosa e cama. Dia com dificuldade relativamente baixa perto do que viria pela frente.



Dia 2: Barra a Borda da Mata

Café da manhã acompanhado de uma agradável conversa com a Joelma, dona da pousada. Dia de longas e cansativas subidas. Fora as lindas paisagens e deliciosas companhias, nenhum acontecimento especial. A conversa prolongada do café da manhã e o grau de inclinação das subidas nos fez concluir o dia um pouco mais cedo do que o previsto. Pernoitamos no Hotel San Diego na cidade de Borda da Mata.


Dia 3: Borda da Mata a Estiva

O dia começou com uma subida forte pra ninguém botar defeito. Dores musculares encurtaram um pouco a jornada. Neste dia conhecemos duas pessoas muito legais, o Luís e o Fernando. Boa parte do pedal da tarde foi de boa conversa sobre vida, sonhos e o que levou cada um de nós até ali. Percorremos 38 km e dormimos em Estiva na Pousada do Póka, em cima da padaria Santa Edwiges. Detalhe: estava acontecendo uma festa junina na praça em frente à pousada. Jantamos e demos uma passadinha rápida na festa para aproveitar as guloseimas típicas. Fomos dormir, mas como a pousada é em frente à praça da festa, o sono profundo só aconteceu no começo da madrugada quando a festança teve fim. Importante: se você resolver dormir em Estiva no mês de junho, verifique se estará acontecendo a tradicional festa junina antes de decidir onde irá pernoitar. Algumas horinhas a mais de sono fazem muita diferença na energia do dia seguinte de um cicloturista.


Dia 4: Estiva a Paraisópolis Acordamos cinco e pouco da manhã, tomamos café, arrumamos nossos alforjes, carimbamos as credenciais e partimos. Saindo da pousada fomos seguindo a seta até um pontilhão que cruza a estrada. Atenção neste ponto. A seta está muito apagada e escondida. Não a vimos e seguimos à direita. Como o caminho é muito bem sinalizado com as setas, achamos estranho não haver indicação neste ponto importante e ficamos desconfiadas que poderíamos estar no caminho errado. Observamos que um pequeno grupo de peregrinos estava passando por cima do pontilhão e então retornamos ao caminho correto. Seguimos em direção a Serra do Caçador. Em meio a muita força física para vencer uma enorme subida, um tombo causou um pequeno estrago. Para me proteger na queda, espalmei o chão com a mão esquerda. Ao mesmo tempo a Cris ao me ver caindo assustou e caiu também. Ela estava com a sapatilha clipada na bike e caiu para o outro lado. Resultado: almoço com gelo no joelho de uma e no pulso da outra. Aqui mais uma comprovação da generosidade do caminho. Ao pararmos em um bar para o tradicional banquete do pão com ovo e colocar gelo nos machucados, o dono do bar e sua esposa preocupados com a situação, deram um jeito de arrumar um remédio para passarmos. A farmácia estava fechada por ser domingo, e eles não sossegaram enquanto não conseguiram uma pomada. Gentilezas do Caminho! Meu pulso começou a doer mais do que imaginei que doeria, e a partir daqui tivemos que administrar alguns contratempos e novos limites físicos foram estabelecidos. Compramos anti-inflamatório na farmácia e seguimos para pousada. Neste dia dormimos na Pousada Casa da Fazenda, alguns quilômetros depois de Paraisópolis. Chegamos a tempo de contemplar um por do sol lindo. A pousada é deliciosa. Foi a pousada mais cara do caminho, porém com detalhes únicos como o charme da decoração de uma antiga casa de fazenda, música de fundo no café da manhã e um visual incrível. Seguimos os procedimentos habituais: banho, jantar, agradecimento pelo dia e cama!


Dia 5: Paraisópolis a Campista

Dia de enfrentar a famosa serra Luminosa. Meu pulso amanheceu mais inchado, com hematomas e o movimento mais limitado. Bateu uma preocupação de como seria dali para frente. Tinha dúvidas se conseguiria seguir viagem naquela situação. O dono da pousada tentou me convencer a ficar e cuidar do pulso, mas a vontade de continuar foi muito maior do que a dor. Coloquei Salompas flexível ao redor do pulso, o envolvi com três bandanas para limitar os movimentos e seguimos viagem. Saímos cedo com neblina intensa e frio. Meia hora depois era impossível continuar com o corta vento. Chegamos “ao pé da Luminosa”. Paisagem incrível! Difícil não tirar um tempo para fotos. Era próxima a hora do almoço e aproveitamos a parada para o tradicional pão com ovo. Entramos em um bar e encontramos um artista local, um menino que desenha super bem, e nos pediu: “Rezem por mim em Aparecida”. Essa é a fé do povo brasileiro. Emocionados com o nosso propósito, também não nos faltou quem nos abençoasse durante o Caminho. Eram preciosas bênçãos de pessoas simples e de muita fé.


Devidamente abastecidas física e espiritualmente, rumo a Luminosa. Logo no comecinho da subida escutamos alguém nos chamando, era a Dona Inês. Uns amigos que fizemos no caminho passaram por lá antes e nos deixaram um bilhete com a Oração da Serenidade e votos de “bom pedal” para o difícil trecho que nos aguardava. Mais gentileza de peregrino. Já que estávamos por lá, a Dona Inês nos convidou para um café com seu famoso bolo assado na folha de bananeira. Não dava para recusar, primeiro porque a Dona Inês é um amor de pessoa. Depois porque com tamanho gasto calórico que estávamos tendo e com o metabolismo acelerado do jeito que o nosso estava, qualquer oferta de comida nos parecia imperdível. Energia especial para o desafio. Enfim a Luminosa. Serra duríssima e longa com muitos trechos cheios de pedras soltas e inclinação bastante elevada. Neste dia chegamos ao ponto mais alto do Caminho. Terminamos esta etapa no início da noite, descendo em direção à Campista e passando um baita frio. Dormimos na pousada da dona Rose.


Dia 6: Campista a Pindamonhangaba

Saímos cedo. Parada no meio da manhã em Campos do Jordão para um chocolate quente e um café. A partir daqui há duas opções para descer a serra: seguir pelo caminho oficial ou por “Pedrinhas”, uma opção, que apesar de muito difícil por ser uma descida íngreme com muitas pedras soltas, é muito recomendada pela sua beleza. Por ser a nossa primeira vez no Caminho da Fé, optamos pelo trajeto oficial. Saindo de Campos, seguimos por uma serra bonita e estreita até chegar à estrada principal onde descemos muitos quilômetros acompanhadas por carros e caminhões em alta velocidade. Trecho delicioso pela descida, mas bastante perigoso também. Chegamos a Pindamonhangaba. Pernoite na Pousada Dois Irmãos.


Dia 7: A chegada em Aparecida

Dia de conclusão do percurso. Muitos sentimentos e sensações misturados nos acompanharam nessas quase duas horas de pedal até Aparecida. Dia com bastante neblina. Esta etapa final é inteira pelo asfalto, completamente plana e sempre acompanhada por bonitas paisagens que emolduram o cenário da chegada. Em relação a pontos de apoio, o peregrino ou bicigrino pode contar com alguns postos de combustível apenas, ou a opção de entrar na cidade. Enfim, estávamos chegando. Difícil segurar as lágrimas quando avistamos a basílica de Nossa Senhora Aparecida. Objetivo atingido. Em agradecimento a tudo o que vivemos, participamos da missa e em seguida nos dirigimos à secretaria para retirar nosso certificado de conclusão do Caminho. Depois disso, estrada em direção a nossas casas.


Já na minha cidade fui ao médico e descobri que meu pulso estava quebrado. Talvez essa dificuldade inesperada tenha feito o Caminho da Fé mais especial ainda. Valeu a pena cada quilômetro. O Caminho é deslumbrante e as pessoas são especiais. Deslumbrante é a palavra certa. Imagine-se acordando bem cedo, ainda com cansaço do dia anterior, algumas manhãs com frio intenso e neblina, e você sobe na bicicleta para pedalar algumas dezenas de quilômetros. Para quê? Para chegar à cidade seguinte? Certamente este é o menor dos objetivos.


Você pode fazer um planejamento impecável, prever cenários e supor situações. Ainda assim o Caminho vai te surpreender! Ficamos tão expostos e sensíveis, que o nosso olhar vai se atentando para o que não conseguimos enxergar com rapidez na rotina diária. Diminuímos o ritmo e os sentidos se abrem.


Em boa parte do Caminho o silêncio predomina. Aí, meu amigo, minha amiga, é você com você mesmo. O diálogo interno te faz companhia. Quando não, o silêncio absoluto te transporta para dentro das paisagens. Você é parte do cenário. Isso me encanta nas cicloviagens. Quanto ao Caminho da Fé, vale muito a pena. Recomendadíssimo! Não há como lembrar deste Caminho sem lembrar das pessoas. A nossa sincera gratidão a cada um que esteve conosco nestes dias e que fizeram esta viagem ser especial.


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